Marina e Marcus eram dois gêmeos que moravam na cidade de Reis de Véu. Nos fins de semana, eles costumavam ir visitar o tio em sua chácara, fora dos limites do centro urbano. Como fosse época de férias, eles ficavam na chácara muitos dias, brincando entre as árvores viçosas, cheias de frutas saborosas, e divertindo-se com os bichinhos que por lá havia. Os tios de Marina e Marcus eram João Antônio e Lúcia Maria, um casal cheio de bons sentimentos que amava seus sobrinhos como se fossem seus próprios filhos.

Naquela tarde, os dois jovens haviam ido à praia próxima com o tio. Marina e Marcos tinham nove anos e eram muito inteligentes e aventureiros. A mãe costumava contar para eles, quando ainda eram duas criancinhas, a historinha do pássaro azul em que o casal de irmãos, Mytil e Titil, partiram em uma

maravilhosa aventura em busca do Pássaro Azul da Felicidade, guiados pela Fada Beriluna.

Havia pouca gente na praia. João Antônio estava espichado em uma cadeira reclinável, bebendo Coca-Cola de canudo, em uma latinha. Marina e Marcus brincavam adiante na areia, construindo um castelo que teimava em ficar torto. O tio ria das crianças, divertindo-se à beça com elas.

Terminado o curioso castelo, Mariana e Marcus foram correr pela beira da água para molhar os pés. O castelinho, como bem observara João, ficara inclinado para frente, como a Torre de Pisa, mas se mantinha firme.

Depois de chutar a água e apanhar algumas conchinhas para escutar o barulho do mar, Marina e Marcus correram até a área proibida, que ficava atrás de uma colina. Tio João cochilava na cadeira, com a boca aberta. – Vamos aproveitar para explorar além da colina, Marcus? – chamou Marina – Dizem que existem coisas maravilhosas por lá. – Se o tio pegar a gente, vai ser aquela bronca…

— Ele tá cochilando, não tá vendo?

Marcus estava afoito para ir além da pequena colina e explorar o que existia por lá. Ele olhou para o mar e viu… viu o crepúsculo que avermelhava o horizonte, causando nas pessoas uma sensação gostosa de paz.

— Vamos logo antes que ele acorde!

Os dois irmãos deram-se as mãos e partiram em desabalada carreira para o montinho. Havia uma placa velha, com a madeira podre e a tinta esmaecida, que dizia: PASSAGEM PROIBIDA. Mas, não existia nenhuma cerca para impedir a passagem dos curiosos. Existia sim uma densa vegetação que impedia a entrada de qualquer pessoa… Ou melhor, impedia a entrada de quase todo mundo, mas não a entrada de Marcus e Marina, que nada temiam e estavam dispostos a enfrentar tudo para satisfazer a sua curiosidade.

Eles meteram-se por dentro da vegetação, confundindo-se com ela e desapareceram. Eram nada menos que dez ou doze metros de plantas e moitas, de heras, cipós e samambaias que se enroscavam nos corpos das crianças como criaturas assombradas, com vida própria, que desejavam impedir a qualquer custo que elas atravessassem a passagem.

— Por que essa passagem é proibida, Marina?

— Parece que o mar nessa parte é mais perigoso… Tem tubarão, polvo gigante, baleia cachalote…

— Isso é conversa do povo!

— Dizem também que existem criaturas do além que ficam na praia, na areia, nas rochas… Parece que bichos estranhos vagam aqui pela noite… Marcus ficou com um tiquinho de medo – só um tiquinho, nada que o impedisse de continuar seguindo a mana até o outro lado. Foi assim que ambos atravessaram a vegetação e desceram o outro lado da colina, atingindo o local proibido.

Olhando para Marcus, Marina desatou a rir:

— Você tá coberto de folha! Parece o Monstro do Pântano!

— E você não tá melhor do que eu! – replicou o garoto, cuspindo folhas e batendo as mãos na cabeça e no corpo para tirar as folhas e gravetos. Eles foram caminhando, cheios de curiosidade. Naquela parte, a areia era bastante escura, fato que logo chamou a atenção das crianças. A noite vinha, pouco a pouco, estendendo seu manto negro sobre a praia. Marcus lembrou-se de que, na historinha do Pássaro Azul, Mytil e Titil visitaram a Rainha da Noite e ficou imaginado que ela estivesse observando os dois lá do alto, talvez de dentro da lua.

De repente, eles escutaram uns gemidos…

Eram gemidos de alma penada. Apesar de assustados, eles seguiram na direção dos gemidos, julgando que alguém estivesse precisando de ajuda. Ao contornarem uma grande pedra, viram uma mula

caída na areia, gemendo muito com uma das patas torcidas.

— Meu Deus, Marcus! É uma mula!

Era uma mula preta, muito grande, quase do tamanho de uma égua. O que eles não sabiam é que aquela era a Mula Sem Cabeça. Claro que não poderiam saber, pois ela ali estava com a cabeça no lugar.

— Vocês poderiam me ajudar! Estou com uma pata torcida e, por isso, não posso andar – falou a mula como se fosse uma pessoa. Marina e Marcus, a princípio, tomaram um susto ao ouvir a mula falar, mas logo se recobraram e acharam muito bom conversar com um animal. – Ela fala… – comentou o menino. – É! Que maravilha, não é Marcus? Quem sabe ela é aquela mula da história do Vô Cleto?

Vô Cleto era o pai de tio João Antônio e da mãe das crianças, Sofia. Ele morava no sítio, criava vacas e bezerros e tinha um livro ilustrado, antigo, de capa dura, chamado Meu Livro de Histórias Bíblicas. Vô Cleto reunia os netos ao seu redor e ficava lendo as histórias daquele livro especial. Uma dessas histórias falava sobre um homem das eras passadas que fora repreendido por uma mula.

— É mesmo, Marina! – disse Marcus, batendo palmas – Deve ser a mula de Bambalaão! – Balaão, Marcus! O nome do profeta era Balaão!

— É mesmo! É que eu acho esse nome estranho demais! – Não, crianças, eu não sou a mula de Balaão! – respondeu o animal – Eu sou a Mula Sem Cabeça! – O quê?! – perguntaram ao mesmo tempo Marina e Marcus, abraçando-se. – É isso mesmo. Eu sou a Mula Sem Cabeça, mas não farei mal nenhum a vocês. – Se você é a Mula Sem cabeça por que tá com a cabeça? – indagou o garoto com muita razão. A mula soltou um zurro que era, na verdade, uma gargalhada:

— As pessoas julgam que eu não tenho cabeça, mas eu tenho. O que acontece é que, com o fogo que sai das minhas ventas, fica impossível ver minha cabeça – as pessoas só veem o fogaréu e pensam que eu não tenho cabeça. Eu solto fogo pela noite para iluminar meu caminho e assustar ainda mais as pessoas.

E, para provar o que dissera, ela expeliu muito fogo das narinas. As chamas elevaram-se alto e cobriram completamente a cabeça da mula.

— Viram?

As crianças começaram a rir, divertidas com aquilo. Nesse momento, o celular de Marina tocou:

— Xiii! É a tia!

Ela atendeu ao telefone:

— Oi, tia!

— Onde é que vocês estão? Cadê o João? Venham para casa que vamos jantar mais cedo, pois hoje vou à missa!

— Tá legal, tia! Já estamos indo!

Os meninos se entreolharam e olharam para a mula. – Antes de irem, vocês podem me dar uma força – disse ela – Estão vendo aquela tábua ali na frente, aquele pedaço de pau? Marcus correu para pegá-lo.

— Agora, apanhem um pouco de cipó e amarrem esse pedaço de madeira na minha perna doente – servirá como tala.

Marcus correu até a colina, pegou cipó e voltou para ajudar Marina, que estava agachada junto da mula, ajeitando a tala. Fizeram um suporte na perna do animal de modo que ele conseguiu se levantar e caminhar, ainda que mancando. – Por que não levamos ela pra chácara? – sugeriu Marcus – Podemos ficar cuidando dela. – Ora, a tia não ia gostar de criar uma Mula Sem Cabeça.

— Mas, ela não precisa saber…

Marina estava começando a gostar da ideia, mas não sabia onde eles poderiam esconder a mula. – No antigo chiqueiro! – gritou o menino, todo satisfeito. – É mesmo! – concordou marina, abrindo um grande sorriso em sua cara redonda. Havia, na chácara, um velho chiqueiro fechado, todo de pedra, que fora usado para criar porcos e bodes, mas agora estava abandonado. Como tinha porta e cobertura, era o local ideal para esconder um animal exótico, como a Mula Sem Cabeça Que Tinha Cabeça. – Vamos fazer assim – disse o menino – Você volta pra onde está o tio João e vai com ele pra casa.

Diga que eu já fui, junto com o Léo. Eu vou com a mula, entro pelo fundo da chácara e coloco a mulinha lá no chiqueiro. A gente fica cuidando dela até ela ficar boinha.

O animal ficou muito agradecido pela solidariedade dos meninos. O que foi combinado foi feito.

Marina retornou pela colina, atravessou a passagem proibida, cheia de cipós e heras, acordou o tio João, que roncava alto deitado na cadeira e voltaram para a chácara. Ela disse que Marcus tinha ido com o Léo, um garoto que morava nas proximidades da chácara e só vivia na praia, tomando banho de mar.

O que Marina não percebeu foi que o castelinho que ela e o irmão construíram permanecia em pé e estava ocupado por um siri.


O plano dos Irmãos Brasilis deu certo. Marcus entrou pelo portão de ferro que havia nos fundos da chácara. Primeiro, ele escalou o portão e pulou para dentro; então, abriu o cadeado que fechava o portão e deu passagem à mula.

Já era noitinha e a mula soltava fogo pelas ventas para iluminar o caminho. De fato, os dois tomaram o caminho mais deserto da praia até a chácara – um caminho sem postes de iluminação, nem casas, nem movimento de veículos. Como fosse noite de lua nova, tudo estava escuro mesmo. A única coisa que encontraram foi um vira-lata que latiu para a mula e os seguiu por um bom pedaço, indo embora depois.

Diante do chiqueiro, Marcus empurrou a porta de madeira, que rangeu assombrosamente, dando passagem a ele e à sua nova amiga. Era um grande espaço quadrado, com uns doze metros de largura e comprimento, dividido por seções menores, onde se alojavam os porcos. Mas, essas seções praticamente já não existiam, pois as muretas estavam arruinadas, espalhadas pelo piso. Quanto à altura, o chiqueiro devia ter uns dois metros.

A Mula Sem Cabeça gostou bastante do lugar, muito sossegado e confortável para qualquer animal.

O próprio Marcus e sua irmã, enquanto brincavam, haviam dormido várias vezes ali, esparramados no chão. Os tios quase nunca iam ao chiqueiro. Foi nesse esconderijo que a mula ficou durante uma semana, cuidada pelo casal de irmãos, bem alimentada e com direito a um grosso cobertor de lã, bastante felpudo.

João e Lúcia nunca imaginariam que, no seu antigo chiqueiro, estava uma Mula Sem Cabeça doente.

A mula contou sua história aos meninos. Como todos sabem, a Mula Sem Cabeça é uma mulher amaldiçoada que, durante a noite, vira mula que sai pelo mundo soltando fogo pelas ventas, assustando e atropelando os viajantes. No caso dessa mula, certa noite em que corria pela noite afora, ela encontrou uma passagem que ia dar no Inferno. Sem saber que o caminho levava às profundezas, a mula desceu e desceu, desceu e desceu até chegar à Mansão dos Condenados. Ficou presa ali na forma de mula e nunca mais retomou sua forma humana. Certa vez, os demônios planejaram uma invasão a uma cidade e a Mula Sem Cabeça, aproveitando a oportunidade, voltou à superfície e permaneceu na Terra, mas não conseguiu mais retomar a forma de mulher. – Vixi! – espantou-se Marcus – Então, você agora é mula pra sempre? – Não sei, mas parece que sim!

Na noite do sétimo dia, a assombração, agradecendo a ajuda dos meninos, partiu em rápida galopada, mergulhando nas trevas e foi-se embora. – Ainda nos veremos! – dissera ela antes de sair da chácara. – Sentiremos saudades! – falou Marina, chorando, pois já considerava a Mula Sem Cabeça como um animal de estimação. Depois desse episódio sobrenatural, Marcus e Marina voltaram à sua casa em Véu de Reis, ansiosos para contar aos colegas que haviam ajudado uma Mula Sem Cabeça de verdade.

— Será que eles vão acreditar, Marina?

— Não sei. Talvez acreditem.

— Tem gente que diz que Mula Sem Cabeça não existe!

— E não existe mesmo! Ela não tem uma cabeça? Só que o fogo cobre a cabeça e a gente não vê!

— Não sei como ela aguenta aquele fogaréu em cima dela, queimando tudo… – Ela é uma criatura do além, Marcus, uma mula sobrenatural – as criaturas assombradas são diferentes. As crianças não esqueciam a aventura com a mula e sentiram-se tentados a participar de uma nova aventura. Na cidade, existia uma caverna misteriosa, que ficava depois do convento dos monges franciscanos. Era conhecida como a Caverna Secreta e todos tinham medo dela. Nem os monges entravam lá, dizendo que, além daquela gruta, existia um mundo diferente. – E se a gente fosse até à Caverna Secreta? – sugeriu Marina. – Seria bom demais… Mas, a gente tinha que ir escondido, né?

— Mas, isso é muito fácil.

E foi fácil mesmo. Para os Irmãos Brasilis não havia nada difícil. Certo dia, eles foram até o convento, que era muito grande. A Caverna Secreta ficava por trás dele, mas não era preciso entrar no prédio para ter acesso a ela. Era necessário dar a volta ao convento e descer uma longa ladeira. A poucos metros dessa ladeira, ficava a misteriosa gruta com sua entrada escura, tal como uma grande boca, pronta para devorar os curiosos. – Vai entrar mesmo, Marina? – perguntou Marcus, um pouco assustado. – Ora, e tivemos todo esse trabalho pra chegarmos aqui e voltarmos? Vamos lá!

E eles foram.

Penetraram na Caverna Secreta. Tinham se preparado para explorá-la, levando lanternas dentro da bolsa de Marina. A menina ia à frente, iluminando o caminho com uma das lanternas. Grudado a ela, ia Marcus. A gruta era escura mesmo e muito comprida, cheia de volteios, de subidas e descidas, toda irregular. Havia morcegos, corujas, escorpiões e cobras

cegas. Não dava para ver o seu final. Marcus esperava, a cada momento, que algum monstro saltasse sobre eles, atacando-os.

E foi o que aconteceu…

Depois de uma longa caminhada, eles avistaram o final da Caverna Secreta. Havia muito verde do outro lado. Parecia um lugar lindo!

Mariana e Marcus apressaram os passos, loucos para chegar ao outro lado.

Sim, o local era maravilhoso!

Do outro lado da caverna, ficava o Mundo Floresta Caiçara, cheio de planícies férteis e belas colinas cobertas por abundante vegetação, por plantas e árvores viçosas, muito Floresta Caiçaras, e por flores coloridas e exóticas que e

spalhavam um perfume maravilhoso.

As crianças estavam pasmas, paradas, contemplando a beleza do lugar quando alguma coisa saltou sobre elas.

Era um Atigrado!

P
CAPÍTULO 2

PELA REGIÃO SOMBRIA

O atigrado era muito grande e estava esfomeado. Sem esperar por aquela surpresa, os Gêmeos Brasilis permaneceram parados, abraçados um ao outro. E teriam servido de comida para o monstro se uma pessoa não intercedesse em seu favor.

Madame Fulozinha apareceu do nada e enfrentou a criatura, usando contra ela sua força. Madame Fulozinha é uma linda cabocla de cabelos compridos que vive nas matas, protegendo os animais. Não usa roupa alguma, servindo a sua longa cabeleira negra como manto para cobrir o seu corpo.

Ela engalfinhou-se com o valente atigrado, rolaram na terra, cobrindo de poeira os dois irmãos.

Parecia a luta de Hércules contra o Leão da Nemeia. Madame Fulozinha, apesar de ser uma mulher, possuía muita força e habilidades na arte de lutar. O atigrado, que era um gigantesco molosso com o pelo pintado como o de um tigre, parecia muito enfurecido e arreganhava seus dentes alvos contra a cabocla.

Marina e Marcus já não estavam mais assustados, mas empolgados com aquela luta. O enorme atigrado, muito corpulento, acabou dando mostras de muito cansaço, Balançou a cabeça, olhou mais uma vez para Madame Fulozinha e achou melhor cair fora. Nas batalhas, essas fugas são chamadas de retiradas estratégicas. Nas batalhas entre os países, quando um exército se vê diante uma situação difícil e percebe que não vai conseguir sucesso na luta contra o exército inimigo, ele bate em retirada. É uma estratégia para evitar uma situação ainda pior.

Depois que o atigrado fugiu, Madame Fulozinha apresentou-se aos meninos e explicou que aquele lugar era o Mundo Floresta Caiçara, uma região povoada por seres fantásticos: alguns muito bons, outros muito perigosos.

Ela explicou que, às vezes, atravessava a Caverna Secreta, mas só ia até o monastério. Os monges sabiam sobre a existência do Mundo Floresta Caiçara, mas mantinham total segredo sobre o assunto. Existia um livro muito antigo na biblioteca do convento que contava a história do Mundo Floresta Caiçara. Era um livro grande e pesado, com capa de madeira.

Enquanto o pequeno grupo caminhava pela longa planície, foi surpreendido por outro atigrado, maior que o primeiro — e mais feroz também. Parecia mesmo ser o irmão do outro, que viera tomar satisfações pelo que fizeram a seu parente.

Madame Fulozinha, contudo, estava muito cansada para enfrentar mais esse monstro. Tomou, portanto, uma atitude de defesa: abraçou as crianças e ficou parada, encarando firmemente a fera peluda.

O bicho fez menção de atacar, mas foi impedido por um grito que saía de detrás de algumas árvores. Era ninguém menos que o Caipora, o famoso protetor das matas.

De um salto, o grande queixada sobre o qual ele vinha montado saiu de onde estava e postou-se entre o atigrado e as crianças. A fera recuou, assustada. O Caipora é o Rei das Florestas e de tudo que há dentro delas. — Vá embora, amigo! — falou o duende para o animal — Deixe os meninos em paz! Humildemente, a fera obedeceu ao Caipora e partiu. Marina e Marcus perceberam que havia mais

alguém com o Caipora, montado na garupa do porco selvagem. Madame Fulozinha explicou quem era ele: — Esse aí atrás é Zumbi, um dos maiores guerreiros do mundo. Ouvindo esse nome, as crianças lembraram-se das aulas de História. A professora Sofia havia ensinado que Zumbi fora um líder negro, responsável pelo governo do Quilombo dos Palmares. Sob sua liderança, muitos negros escravos fugiram das senzalas e lutaram contra os homens brancos. Depois, os homens que caçavam escravos fugidos haviam cortado

sua cabeça. Mas, Zumbi continuou vagando pelas matas, protegendo todos aqueles que buscam a liberdade. — Quer dizer que Zumbi é um zumbi? — perguntou Marina, curiosa. — Claro! — respondeu a cabocla — A palavra zumbi é de origem africana e significa uma pessoa que nunca morre, um espírito que fica vagando pelo mundo.

Agora, Marina entendia porque os mortos-vivos que saíam de seus túmulos e ficavam atacando as pessoas eram chamados de zumbis. Ela cochichou para o irmão: —Será que ele também gosta de comer cérebros? Madame Fulozinha, que a tudo ouvia, respondeu prontamente: — Comer cérebros, ele não come, mas, gosta muito de arrancar cabeças. Marina e Marcus fizeram cara de espanto.

Zumbi era um negro muito alto e musculoso, com peito largo e cabelos muito crespos. Tinha lábios cheios, rubros da cor de sangue. Os olhos eram bem pretos, mas as escleróticas eram vermelhas. Na base de sua cabeça, no lugar em que ela encontrava o pescoço, existia uma série de marcas, de cicatrizes que indicavam que ele havia sido decapitado. — Durante muito tempo, Zumbi vagou procurando por sua cabeça. Finalmente, achou sua cabeça e colocou-a no seu devido lugar. Mas, ainda hoje, ele arranca as cabeças de seus inimigos. E, de vez em quando, também tira sua própria cabeça e anda com ela nas mãos, assombrando as pessoas.

Marina e Marcus ficaram muito empolgados com a história de Zumbi, o guerreiro negro. Ficaram sabendo que ele e o Caipora eram muito amigos. Enquanto o porco caminhava pelo vale, as crianças e Madame Fulozinha acompanhavam a pé. Marcus ia olhando o Caipora, pequeno índio de orelhas pontudas, cabelos escorridos e corpo muito cabeludo. Em questão de beleza, o duende contrastava bastante com a cabocla. Mas, ambos eram protetores das florestas e perseguiam os caçadores.

Enquanto caminhavam, os irmãos tiveram uma bela surpresa. Reencontraram sua amiga, a Mula sem Cabeça. Ela vinha correndo, soltando fogo pelas ventas. Assim que se aproximou deles, extinguiu as chamas e zurrou de felicidade. — Que felicidade em rever vocês! — disse ela — Pelo visto, vocês atravessaram a Caverna Secreta. O que estão achando do Mundo Floresta Caiçara? É um lugar maravilhoso, mas cheio de surpresas também. Há muitos perigos por aqui, mesmo para nós, que somos criaturas fantásticas.

Mal terminara de falar, um alto e feio capelobo saltou sobre a mula e levoua consigo, desaparecendo em um matagal antes que Madame Fulozinha ou o Caipora pudessem fazer alguma coisa.

Os capelobos são seres ágeis e assustadores.. Os índios têm muito medo deles. O aspecto dessas criaturas é medonho, pois apresentam focinho de tamanduá, corpo humano coberto de pelos híspidos e pés de garrafa. Seus uivos parecem os de uma alma penada, causando calafrios em quem os ouve. São carnívoros e alimentam-se de cães e gatos recém-nascidos e de cérebros humanos. A forma que usam para extrair o cérebro humano é aterrorizante: eles furam o crânio da vítima com o longo focinho e sugam seu alimento, abandonando em seguida o cadáver.

Aquele robusto capelobo raptou a mula com o intuito de torná-la sua escrava. A pobre mula zurrou em desespero, mas ninguém pode fazer nada — não naquele momento. A agilidade do lobisomem indígena e a surpresa que seu aparecimento causou nas crianças e nos outros seres deram vantagem a ele. — Pobre mula! — lamentou-se o Caipora que, saltando no chão, ainda correra atrás do capelobo, mas não encontrara rastro algum no matagal — Se não for devorada, certamente virará uma escrava! Marina começou a chorar com dó da amiga. — Calma, mana! – confortou-a Marcus — Tenho certeza que o Caipora irá salvá-la!

— Sim — confirmou Madame Fulozinha — Não a deixaremos nas garras daquela fera! Marcus, que já era um pré-adolescente, sentia-se muito atraído pela beleza selvagem da cabocla. A linda cabeleira da jovem caía por sobre os ombros, os seios as costas, por todo o corpo. Ele imaginou que a força dela vinha daqueles cabelos, tal como acontecia com Sansão. — Aposto que se eu cortar seus cabelos, ela perde a força — cochichou ele para Marina. O corpo de Madame Fulozinha era deslumbrante e seu rosto era lindo, com olhos ativos e hipnotizantes, lábios rubros como sangue e um delicado nariz. Certa vez, um colega seu, mais velho, que colecionava revistas da Playboy, havia dito que as mulheres que têm bumbum maravilhoso, belas nádegas, são chamadas de calipígeas. Marcus achou a palavra feia demais, mas decorou o nome. Ele achava Madame Fulozinha uma cabocla calípigea!

Na verdade, tudo nela era belo e abundante! Alta e bem-feita, com belas curvas e exalando um perfume inebriante, de flores diversas. O que ele achou muito interessante foi o fato de ela andar descalça, sem proteção nenhum para os pés.

Sim, havia muita diferença entre ela e o Caipora, que era bem feioso!

Como todos sabem, o caboclo é fruto da mistura de raças, é o resultado da união entre uma pessoa branca e um índio. No caso de Madame Fulozinha, que alguns chamam de Comadre Fulozinha, ela era filha de um índio e de uma mulher branca. Sua história é um pouco parecida com a de Tarzan e a de Mogli. Ela se perdeu na mata quando ainda era uma criança. Muitas acharam que ela tinha morrido, mas não era verdade. O Caipora encontroua e cuidou dela, junto com outros animais. O duende lhe deu as folhas mágicas de uma árvore sagrada, capazes de conceder a vida eterna. Assim, a bela cabocla tornou-se imortal e ficou ajudando o Caipora a defender as matas.

Também não era verdade que, se agraciada com fumo, mel e mingau, ela se corrompia e oferecia caça ao caçador. Isso seria um ato de traição contra a natureza! Ela bem que gostava de fumo, de mel e de mingau — mas, não se

vendia por eles, não corrompia seus princípios de guardiã da fauna e da flora.

Após caminharem por alguns minutos pelo belo vale, chegaram a um ponto de transição. Estendia-se, diante deles, uma densa e escura mata. — Certamente, o capelobo penetrou nessa mata — falou Zumbi com sua voz cavernosa — A Região Sombria é o local preferido por essas criaturas! Eles penetraram na macabra região

Na Região Sombria é sempre noite. É um ambiente pesado e sufocante, capaz de fazer o mais tranquilo budista entrar em pânico. Marina e Marcus caminhavam em silêncio, acompanhando as passadas, agora morosas, do grande porco selvagem. A cabocla também seguia calada, atenta aos perigos escondidos naquela área proibida, cheia de surpresas assustadoras.

Todas as árvores eram muito copadas e fechavam-se no alto. Os seus troncos assumiam formas diferentes, ora eram esguios, ora eram grossos demais, ora apresentavam grande ocos que pareciam olhos de coruja. Os galhos curvos enroscavam-se na roupa dos meninos e era preciso que Madame Fulozinha os libertasse.

O que mais havia na Região Sombria eram corujas, corujas de todas as espécies, inclusive a famosa coruja branca, chamada pelo povo de RasgaMortalha. Algumas serpentes deslizavam sinuosamente sobre os pés das crianças, a cabocla orientava os pequenos, dizendo que permanecessem parados — as serpentes não atacam por atacar, a picada é uma reação à presença do perigo. Isso significa que, da mesma forma que consideramos as serpentes perigosas para nós, elas também nos consideram uma ameaça.

De repente, um morcego gigante passou voando sobre eles, emitindo um guincho assustador. — Um andirá! – gritou a cabocla. O morcego avançou contra os viajantes, com a boca aberta e os caninos à mostra. Daquele jeito, com suas asas abertas, ele tinha o dobro do tamanho de uma pessoa. Era uma criatura horrível, com olhos inflamados e fúria incontrolável.

O próprio Caipora viu-se em maus lençóis. Isso porque o andirá não é apenas um animal — em vida, ele foi um poderoso pajé. Muitos grandes feiticeiros, depois de mortos, passam por uma metamorfose e ficam vagando pelas matas na forma de andirás.

Zumbi atirou sua lança, mas o morcego desviou-se habilmente dela. Cheio de raiva, ele avançou contra o guerreiro de Palmares, derrubando-o do porco do mato. Mas, o negro não se deu por vencido.

Saltou sobre o bicho e foi erguido no ar. Marina e Marcus contemplaram, extasiados, o voo do morcego com Zumbi montado em suas costas, agarrado em suas asas.

Com seu braço direito, o musculoso guerreiro envolveu o pescoço do morcego e começou a sufocá-

lo. A fera corcoveou, lutou para se livrar daquele amplexo, mas não conseguiu. Mas, como já foi dito, o andirá tem poderes mágicos. De repente, ele desapareceu no ar, sumiu como um fantasma, como uma visão. Zumbi ficou solto no espaço e veio ao chão, batendo com impacto sobre a raiz descoberta de uma árvore.

O Caipora correu para acudi-lo, mas Zumbi já estava se levantando. O guerreiro apanhou sua lança, montou novamente no porco e ordenou: -— Vamos adiante! Aquele chupador de sangue não vai aparecer mais! Nesse momento, ouviram uns gemidos ali perto. Uma mistura de relincho com gemido de mulher.

Era a Mula Sem Cabeça.

O Caipora logo identificou o lugar de onde partiam os ruídos. Um grande carvalho apresentava, perto de suas raízes, uma abertura que dava para uma caverna subterrânea. — Ali! — apontou o indiozinho peludo, saltando de sua montaria e correndo para o carvalho. Os outros o seguiram.

O Caipora meteu-se agilmente pela passagem e as crianças foram atrás. Madame Fulozinha também entrou, ficando o porco e Zumbi na superfície, vigiando.

Lá embaixo, o Caipora e seus amigos encontraram a pobre mula, com uma grande corrente em torno do pescoço, esforçando-se por rompê-la. Ela chorava de desgosto e trazia no lombo as marcas de várias feridas. — Coitadinha! — – falou Marina — O capelobo chicoteou a pobrezinha! Realmente, o estranho lobisomem havia maltratado a mula com um grande chicote de cabo de madeira. Esse chicote tinha muitas tranças de couro com bolinhas pontudas de metal. Era esse o instrumento com o qual o capelobo castigava seus escravos.

A corrente era enfeitiçada e, por essa razão, a mula, apesar de sua força sobrenatural, não conseguia quebrá-la.

Foi então que o capelobo saiu de uma câmara, urrando furioso contra os invasores e exibindo as garras de suas mãos. Madame Fulozinha saltou como uma onça na direção dele e derrubou-o. Mas, a fera também era forte e revidou o golpe, atingindo a face da mulher com seu focinho longo.

Ela rolou pelo chão, mas já havia apanhado a chave da corrente, que estava presa à cintura do capelobo. Percebendo o fato, ele deu outro urro, mais furioso ainda, e começou a emitir uns guinchos assustadores de alma penada.

O Caipora postou-se entre ele e a cabocla enquanto ela abria as cadeias que prendiam a mula.

Livre, a mula preta (que, naquele momento, deixava perceber totalmente a sua cabeça, pois não estava lançando fogo pelas ventas), zurrou de alegria e aplicou um belo coice no capelobo. O Caipora aproveitou e passou a corrente em uma de suas mãos, fechando-a e jogando a chave a alguns metros de distância. — Ele vai demorar muito tempo até encontrar um meio de alcançar a chave — falou o duende sorrindo — Ou até outro capelobo vir aqui libertá-lo.

Todos saíram da caverna subterrânea e reencontraram o Zumbi, sentado calmamente sobre o grande queixada, vigiando. — Subam todos! —- ordenou o duende — A montaria é espaçosa. Apertando um pouquinho tem lugar pra todo mundo! Madame Fulozinha sentou-se no colo de Zumbi, Marina sentou-se sobre as pernas cabeludas do Caipora e Marcus apertou-se entre as costas do Caipora e as pernas da cabocla. O porco grunhiu e saltou — um salto tão alto que fez os Gêmeos Brasilis lembrarem o passeio que haviam feito na roda gigante, no parque de diversões de Véu de Reis. O animal correu rápido, atravessando a Região Sombria com a velocidade de um ágil cavalo.

Adiante dele, ia a Mula Sem Cabeça, iluminando as trevas com o fogo que saía de suas narinas.

A Região Sombria ia ficando cada vez mais escura à medida que eles penetravam mais fundo. O

Caipora, guiando seu queixada, falou: — A alguns quilômetros daqui, fica o castelo do Mapinguari. Marina já ouvira falar desse monstro. Mas, não sabia detalhes sobre a sua vida. — O Mapinguari veio de longe, lá da Floresta Amazônica. Ele tem pretensões de dominar o Mundo Floresta Caiçara. Se ele conseguir isso, nossa paz está acabada. Ele construiu sua fortaleza aqui na Região Sombria, que é o lar das criaturas malvadas. — Vocês estão dispostos a nos ajudar nessa batalha? — perguntou a cabocla, passando as mãos sobre os cabelos de Marcus. O garoto, para provar sua coragem diante daquela linda mulher, respondeu prontamente: — Claro que sim! Enfrento qualquer coisa para salvar o Mundo Floresta Caiçara! O Mapinguari e até o Conde Drácula!

Ele falou no Conde Drácula só por falar, por causa da fama nefasta dessa criatura. O que ele não imaginava é que, realmente, teria que enfrentá-lo mais tarde!

Marina também estava disposta a encarar o novo desafio.

Para aquelas crianças, era bem mais fácil enfrentar seres sombrios e sobrenaturais que enfrentar as dificuldades do dia a dia, como as oscilações da economia, as corrupções políticas, a criminalidade e outras coisas comuns na sociedade humana. — Será que vocês estão mesmo preparados para essa luta? — perguntou o duende. Na verdade, ele pretendia testar a coragem e a determinação de Marina e Marcus.

Assim que chegaram a um brejo muito feio, o Caipora parou o porco. A Mula Sem Cabeça, que ia à frente, continuou sua galopada, zurrando alto. —- Vamos descer aqui! – ordenou o duende. Todos desceram.

Era um brejo muito lodoso, sem vestígios de nenhum animal, a não ser alguns pássaros que pousavam sobre as árvores. Uma região muito alagada e que exalava um odor pouco agradável.

Marina torceu o nariz. Marcus tapou o seu. Madame Fulozinha observava os arredores, desconfiada. — Sei muito bem quem habita este pântano — falou ela. O Caipora sorriu. Zumbi não esboçou nenhuma reação. O queixada grunhiu e enfiou o focinho no solo úmido, chafurdando. — Quem é que mora aqui? – indagou o menino, cheio de curiosidade. —- Você logo saberá — respondeu o duende. De repente, um urro que parecia de leão. Marina e Marcus esbugalharam os olhos. A cabocla colocou-se em posição de defesa.

Do lodaçal, saiu uma criatura estranha. Tinha corpo que lembrava o de um homem, mas coberto por escamas. Os dedos das mãos e dos pés eram ligados como os dos anfíbios. Tinha cara de piranha, com dentes medonhos à mostra. Ao seu lado, pulavam grandes sapos cururus que não paravam de coaxar. — Quem é esse bicho? —quis saber a garota, espantada. — Vocês disseram que estavam prontos para enfrentar o Mapinguari — falou o Caipora — Então, devem ter coragem suficiente para enfrentar o monstro aquático da Iara. Ouvindo falar na Iara, Marcus ficou empolgado. Gostaria muito de conhecer essa entidade famosa, habitante dos rios brasileiros, tão falada pelos índios. Contavam que ela tinha uma beleza estonteante e sua voz era tão doce que não havia homem que pudesse resistir a ela. Os homens ficavam tão encantados com sua beleza e sua voz que se atiravam na água atrás dela e perdiam-se para sempre nas profundezas.

Mas, havia quem questionasse essa opinião…

O professor de latim da escola onde Marina e Marcus estudavam, Tio Moisés, dizia que a Iara levava os homens para cidades maravilhosas no fundo dos rios. Nessas cidades, não havia sofrimento, nem dor, nem doença, nem morte. Era um mundo fantástico, um verdadeiro paraíso.

E as crianças acreditavam em tudo que Tio Moisés dizia, pois ele era um velho vivido e conhecia todos os segredos do mundo. Era um negro alto, de cabelo pixaim todo branco, que gostava de fumar um cachimbo clássico, igualzinho ao do Sherlock Holmes.

A Iara criara aquele monstro, pois tinha poderes mágicos. Depois, designara a criatura para tomar conta do brejo da Região Sombria, onde havia pouca fauna, mas muita flora — uma flora exótica, é verdade, mas era flora. A criatura executava todas as ordens que o Caipora, senhor das matas, dava para ele.

Enquanto Marcus assim sonhava com a Iara e Marina observava o monstro que, lentamente, aproximava-se deles, não notaram que seus amigos haviam se retirado. Ao se dar conta disso, a menina berrou:

— Madame Fulozinha! Caipora! Zumbi! Onde vocês estão? — Acalme-se, Marina! – falou a voz do duende, calma, vinda de algum lugar — É preciso que vocês nos mostrem que realmente estão prontos para enfrentar o Mapinguari. — Terremos que enfrentar esse bicho? — perguntou a menina. — Não tenham medo! Tenho certeza que vocês podem — falou a voz da cabocla. — E agora, Marcus? Temos que enfrentar esse monstro! — Será que é uma coisa tão difícil assim? Marcus estava cheio de coragem, pois queria impressionar Comadre Fulozinha e a Iara.

O porco do mato permanecera ali. Estava com o focinho todo sujo e resolveu se deitar, afundando até quase a cabeça no solo encharcado. Grunhia e grunhia.

O monstro aquático da Iara já estava bem pertinho.

Não havia jeito. Eles teriam que encarar o bicho!

CAPÍTULO 3

O BOTO COR DE ROSA

A luta entre os Gêmeos Brasilis e a criatura do pântano não foi tão difícil quanto eles pensavam que seria. Eles procuraram usar, acima de tudo, a astúcia e a agilidade. O monstro não era tão rápido, de modo que teve dificuldades em perseguir e agarrar Marina e Marcus.

Porém, no que se refere à força, é claro que o monstro valia por um punhado de Marinas e Marcos.

Esse era o problema, pois quando ele conseguia agarrar uma das crianças, dava um trabalhão para a vítima se desvencilhar. Durante dez minutos, a luta prosseguiu nesse ritmo incerto — não se sabia quem seria o vencedor no final. Depois, mais uma vez, a voz do Caipora se fez ouvir, dizendo: — Marina! Marcus! Aproximem-se da água! Eles seguiram a ordem. E a voz continuou: — Estão vendo do lado direito, junto de uma pedra branca com formato de ovo, uma plantinha? A criatura, que havia ficado para trás, voltava a se aproximar, sempre cercada por enormes cururus. — Já vimos a plantinha? — gritou Marina em resposta ao Caipora. — É um trevo! — gritou o menino — Um trevo de quatro folhas! — Isso mesmo! — concordou a voz do Caipora — Pois, peguem esse trevo. Ele é mágico e tem poderes que vocês nem podem imaginar! Peguem o trevo e mostrem aso monstro!

As crianças obedeceram. Arrancaram a plantinha do local onde estava enterrada e a empunharam como se fosse uma arma. A criatura, que já vinha próxima, com a boca bem aberta, arregalou os olhos e recuou com um berro.

O trevo realmente era muito poderoso! Um talismã que afastava as criaturas malvadas!

Nesse momento, o Caipora e seus amigos reapareceram, deixando seu esconderijo. — Yahu! — gritou o duende de orelhas pontiagudas — Vocês passaram no teste! Mostraram que têm realmente coragem para enfrentar as criaturas monstruosas! Estão, portanto, preparadas para enfrentar o Mapinguari. — Quer dizer que podemos seguir com vocês? — perguntou Marina, toda sorridente. — Sim. Podem. Marcus ficou todo animado com a notícia e olhou para Madame Fulozinha. Ele conseguiu provar que era valente, que era destemido, que poderia ajudar aquela cabocla tão bonita, cujos cabelos serviam como véu e tornavam-na ainda mais atraente.

O grupo retomou sua marcha. Todos iam montados no queixada, que agora estava todo lambuzado.

Mariana guardou o trevo, pois o Caipora explicou que, por ser um poderoso talismã, ainda iria ajudá-los muito.

Saindo da Região Sombria, o duende disse que eles teriam que prosseguir sozinho e indicou o caminho a seguir. — Com o trevo de quatro folhas, não há o que temer — disse Madame Fulozinha — Mas, ainda voltaremos a nos ver. — Sim — concordou o Caipora — Todo herói precisa enfrentar certos perigos sozinho em sua jornada. E foi assim que Marina e Marcus despediram-se do Caipora, da cabocla e de Zumbi (e do porco lambuzado) e caminharam pela mata até chegar a uma aldeia indígena. Os Gêmeos Brasilis ficaram muito

contentes, pois nunca tinham visto uma aldeia de verdade, somente através dos livros, revistas, TV e cinema.

Assim que viram aquelas duas crianças brancas, os índios entraram em alvoroço. Começaram a falar entre si em língua tupi. Mas, eles também conheciam o português — pelos menos, alguns índios conheciam a língua portuguesa. Alguns dos monges do convento de Véu de Reis haviam visitado aquela aldeia e ensinado o português para os seus habitantes.

O cacique veio logo em direção aos irmãos, com o peito nu, descalço, vestido em uma tanga feita de folhas de bananeira, com um alto cocar na cabeça. Dirigiu-se a eles na língua portuguesa, pois concluiu que dificilmente aqueles meninos brancos, tão novos, entenderiam o tupi: — Estão perdidos na mata, meninos da cidade? — Sim e não — respondeu Marina — Na verdade, foi o Caipora que nos mandou até aqui. Ao ouvir falar no Caipora, o chefe indígena estremeceu. Aquele ser peludo, habitante das matas brasileiras, possuía o poder de assombrar e, ao mesmo tempo, inspirar respeito e admiração no povo tupi.

O cacique convidou as crianças até sua oca, situada no centro da aldeia. A chegada de Marina e Marcus despertou a curiosidade de toda a população. Muitas índias jovens acompanharam os meninos, cochichando entre si e apontando para eles.

A alguma distância do espaço residencial, havia plantações de milho e mandioca. Alguns cães andavam soltos pela aldeia, mansos e afáveis. Marcus encantou-se com uma raposa cinzenta, que se juntou ao grupo de jovens para seguir os forasteiros. Havia ainda muitos papagaios e araras, pousados em árvores ou sobre os ombros dos índios, fazendo a maior algazarra. Alguns periquitos sem rabo, que são chamados tuins, também voavam, fazendo uma grande barulheira.

Um velho pajé, com o rosto todo enrugado, parecendo ter mais de mil anos, também apareceu sacudindo um chocalho. Ele estava todo enfeitado com penas de aves e pinturas estranhas pelo corpo.

Trazia uma argola no nariz e duas outras muito grandes penduradas nas orelhas.

Ele ofereceu sua oca para abrigar as crianças enviadas pelo Caipora. A sua casa ficava próxima à oca do cacique. Assim, os Gêmeos Brasilis visitaram a oca do chefe Ubiratan, mas pernoitaram na casa do pajé Apoema.

Belas índias trouxeram comida para as crianças: bananas de casca muito amarelinha, milho assado na fogueira, mel e mandioca frita. Marcus comeu até se empanzinar.

Uma das índias que trouxe alimentos para eles chamava-se Vitória Régia e era a mais bonita de todas as índias da aldeia. Ela tornou-se muito amiga de Marina e contou sua triste história. — Chamava-me, no princípio, Naiá. Eu adorava a lua e desejava ardentemente ser levada por ela para povoar o céu na forma de uma estrela cintilante. Mas, nunca chegava esse dia… Uma noite, enquanto observava um lago, vi a lua dentro dele, linda como sempre. Enlouquecida pelo desejo de me unir a ela, atirei-me às águas… e morri afogada. Mas, Jaci (que é a divindade que vocês, brancos, chamam de lua), teve pena de mim e transformou-me em uma planta, a Estrela das Águas! — Que é a vitória-régia! — completou Marina, que já vira essa formosa planta que só se abre durante a noite. — Exatamente. Fiquei presa a esse encantamento até há pouco tempo atrás. Jaci resolveu, então, me dar uma nova chance e restituiu-me à forma humana. — Por isso, você é tão linda! — falou Marcus, que olhava babando para a bela índia de pele acobreada. No momento em que Vitória-Régia contava essa história já era noite e os três estavam reunidos em torno de uma fogueira, olhando a lua cheia que resplandecia no céu.

Enquanto ouvia essa narrativa maravilhosa, Marcus desejou ardentemente ser levado para o céu por Jaci. Desejou muito virar uma daquelas estrelas que brilham no céu e vivem por toda a eternidade,

espalhando sua luz e inspirando os poetas.

Desde novo, o menino tinha medo da morte. Tio Moisés dissera que nem sempre a morte é feia, mas, em alguns casos, ela assume a forma de uma mulher com cara de caveira, toda encapuzada de negro, com uma foice afiada nas mãos. É assim que ela percorre o mundo, sempre levando as pessoas que estão marcadas para morrer em um dia determinado.

Assim, era melhor virar estrela que morrer. E Marcus passou a acalentar essa esperança em seu coração desde aquele dia.

Já passava da meia noite quando a índia concluiu sua história. Não havia mais nenhum índio fora da oca. Vitória Régia já ia convidando os amigos para dormir quando apareceu um belo rapaz, alto, com cabelos negros e escorridos e olhos muito azuis.

A índia não o conhecia, mas julgou que fosse membro de alguma família que morava na aldeia.

Muitas vezes, os índios recebiam visitas de parentes de aldeias vizinhas ou mais distantes.

O índio falou com Vitória Régia e a jovem ficou imediatamente apaixonada por ele. Marina, no entanto, olhou-o desconfiada. Marcus continuava sonhando em virar estrela e foi deitar-se na rede na oca do pajé Apoema.

Com sua bela voz, o rapaz declamou uma poesia em língua tupi, fazendo a índia corar de emoção e sorrir dengosa para ele. Esse sedutor não me parece nada confiável!, pensou Marina. Acho que Vitória Régia precisa de ajuda. O pior aconteceu quando o jovem estendeu a mão para Vitória Régia, convidando-a para um passeio. A bela moça aceitou e despediu-se de Marina, dizendo que logo voltaria para casa, pois ela também morava com o pajé e ajudava o velho a executar os rituais em honra a Jaci e a Tupã, o deus do trovão.

Marina esperou que eles se afastassem e continuou pensativa. Pensou em chamar o pajé. Pensou em chamar o cacique. Pensou em chamar Marcus. Pensou até em chamar um cachorro malhado que estava olhando para ela na entrada de uma oca.

Mas, não chamou ninguém.

Resolveu ir atrás do rapaz e da moça para evitar que algo de mau acontecesse com ela.

Mas, o casal havia tomado um rumo bem desconhecido. Marina demorou a descobrir o rastro deles. Ou melhor, ela só conseguiu descobrir mesmo o rastro dele.

Depois de meia hora ou mais procurando pelo mato, a garota viu o rapaz novamente. Ele agora estava completamente nu, sem tanga alguma sobre o corpo e caminhava na direção do ribeirão que cortava a aldeia.

Maria continuou seguindo o sujeito. Estava cada vez mais intrigada com ele.

Diante do ribeirão, o misterioso rapaz abriu bem os braços e, dando um espetacular salto sobre as águas, transformou-se no boto cor de rosa, mergulhando. Assim, na forma de boto, ele foi saltando dentro do ribeirão.

Durante muito tempo, Marina permaneceu ali, escondida atrás de uma árvore, observando o fantástico animal de ventre rosado que saltava dentro d’água. Depois, saiu correndo de volta à aldeia. Encontrou Vitória Régia na entrada da oca do pajé, olhando os arredores. — Onde você esteve, menina? — indagou a índia, preocupada — Pensei que já estivesse dormindo! — Você não vai acreditar no que eu vi, Vitória Régia! – falou Marina, espantada — Uma coisa maravilhosa, mas terrível também! — O que foi? O que aconteceu? — Aquele jovem com quem você saiu… Ele é o boto cor de rosa! Eu vi ele se transformar, e mergulhar dentro do ribeirão, e ficar saltando dentro dele, pulando, pulando bem assim…

E Marina imitou com as mãos os saltos que o boto dava no ribeirão. Vitória Régia ficou admirada daquela revelação, escutando a garota atentamente. Contudo, assim que ela terminou de narrar, a índia falou:

— Não pode ser, Marina! Você está enganada! Seus olhos enganaram você! Ele é apenas um índio! Você verá amanhã quando ele aparecer!

Elas entraram na oca e foram dormir. No outro dia, ao contrário do que imaginara Vitória Régia, o rapaz não apareceu. Ela ficou triste e desconfiada, mas ainda assim não acreditou na revelação de Marina.

Os Gêmeos Brasilis permaneceram por muitos dias na aldeia. O Caipora não apareceu durante esses dias, nem a bela cabocla de cabelos compridos. Mas, o porco selvagem, às vezes, vinha até pertinho da aldeia, observava as coisas, olhava os meninos e depois ia embora. Era como um mensageiro do duende, dizendo que o Caipora ainda estava acompanhando a jornada das crianças, zelando por elas.

Marina guardava com muito cuidado o trevo mágico de quatro folhas. O misterioso talismã era um artefato sagrado, capaz de afugentar maus espíritos e derrotar criaturas monstruosas. Ela não poderia perdê-lo jamais!

Duas semanas depois do encontro com o boto, Vitória Régia descobriu que estava grávida.

CAPÍTULO 4

O CAMALEÃO DA RIQUEZA


Quando não foi mais possível a Vitória Régia esconder a gravidez, todos na aldeia ficaram cientes do que estava acontecendo. O pajé Apoema concluiu imediatamente que se tratava de obra do boto. — O filho de Vitória Régia será uma criatura sagrada — disse ele — Talvez, torne-se um grande herói. Apoema era um grande feiticeiro e sacerdote. Alguns índios afirmavam que ele tinha mais de 500

anos. Ao contrário de outros sacerdotes tupis, de outras aldeias, que falavam que Jurupari era uma divindade do mal, Apoema dizia que Jurupari era bom, que era um grande legislador, que havia nascido de uma virgem que fora fecundada pelo leite do mapati um fruto sagrado. Jurupari era, portanto, um índio muito sábio. Marina e Marcus permaneceram na aldeia. Marina desejava ver o nascimento do filho de Vitória Régia e do boto. — Ele vai nascer com corpo de índio e cara de golfinho — falava Marcus. Os Gêmeos Brasilis passaram os meses brincando com as crianças indígenas, ajudando na lavoura, acompanhando os ritos sagrados a Tupã, a Jaci e a Jurupari, organizados por Apoema. Durante as brincadeiras, ficaram sabendo, através das outras crianças, sobre a existência de um camaleão da riqueza, um réptil com poderes mágicos, capaz de trazer fortuna para o seu dono.

Os curumins descobriram que esse camaleão pertencia a um índio que morava em uma região mais afastada da aldeia, local aonde raramente os outros índios iam. Quem fizera essa revelação fora o próprio Apoema, feiticeiro velho que de tudo sabia.

Dessa forma, os curumins, Marcus e Marina decidiram ir até lá para ver esse fantástico animal.

O índio que tinha o camaleão morava em uma pequena oca distante mais ou menos uma légua e meia da povoação. Era uma boa caminhada, mas os dois irmãos estavam dispostos a encará-la.

Diante da pequena oca do índio Ibaretama ficava uma pequena roça de milho. Um cãozinho do rabo fino estava sentado à entrada e, assim que viu os Gêmeos Brasilis se aproximarem, espetou as orelhas em sinal de alerta. Logo, começou a latir.

Ibaretama, ouvindo os latidos do cão, saiu à porta da oca para ver o que estava acontecendo.

As crianças, que nunca tinham visto o índio, pararam admiradas. Ele tinha um porte majestoso, talvez mais de dois metros de altura. Também era muito velho, tão idoso, ou mais, que Apoema. Em sua cabeça trazia um cocar de penas de tucano, muito bem confeccionado por mãos hábeis. A sua tanga era feita de folhas de bananeira, mas pintadas de cores diferentes. A voz dele era cavernosa, lembrando a voz do próprio Tupã. — O que querem aqui, curumins? — indagou Ibaretama às crianças. Marina disse: — Soubemos que o índio Ibaretama possui o camaleão da riqueza e viemos conhecê-lo. O índio sorriu com seu rosto enrugado e convidou as crianças a se sentarem na porta da oca sobre uma esteira. Ele colocou um tamborete perto da esteira e começou a falar: — O camaleão é uma criatura poderosa, criado por Tupã para conceder riqueza aos que o possuem. Ele tem milhares de anos, não morre nunca e, quando Sumé retornar de sua longa viagem, vai conceder ao camaleão um lugar de honra em seu reino. — Mas, se o senhor tinha o camaleão, onde estão suas riquezas? — perguntou Marcus, que observou a pequena oca em que o índio habitava.

— Existem vários tipos de riquezas — respondeu Ibaretama — Saúde, longa vida, lindas mulheres e o metal que os homens brancos procuram. Na minha caverna secreta, a Caverna dos Tesouros, eu tenho muitas pedras brilhantes: ouro, prata, diamante, pérolas. Mas, nenhum homem branco, nem índio, nem vivente algum sobre a terra conhece o caminho até lá. Nem eu mesmo sei o caminho para lá. Somente o camaleão sabe, mas ele foi roubado de Ibaretama.

Diante dessa revelação, os irmãos arregalaram os olhos, muito espantados. — Antes de curumins brancos chegarem aqui, os curumins da aldeia estiveram na oca e roubaram o camaleão da riqueza, deixando Ibaretama desesperado.

Marina e Marcus lembraram-se de que, há cerca de dois dias, um grupo de crianças indígenas havia partido da aldeia, fazendo muita algazarra. A raposinha ia entre eles.

Desde que conheceram aquelas crianças, Marina e Marcus perceberam que elas estavam muito interessadas no tal camaleão. Era um grupinho de doze crianças entre oito e doze anos, incluindo meninos e meninas. O menino que liderava o grupo chamava-se Cauã, era muito bonito e robusto, adestrado no manejo do arco e da lança — seria, certamente, um excelente soldado. Além do mais, era sobrinho do cacique Ubiratan. — Nunca imaginei que eles fariam isso! — admirou-se Marina. — Curumins estão dominados por uma entidade má! — continuou Ibaretama, que falava muito bem a língua portuguesa — Curumins brancos não gostariam de me ajudar e também de ajudar os curumins da aldeia? — E como podemos fazer isso, Ibaretama? — perguntou Marcus. — Vocês devem seguir os indiozinhos na primeira oportunidade e ver para onde eles estão indo. Assim, descobrirão quem está comandando os curumins da aldeia e onde está guardado o camaleão que

foi roubado de Ibaretama.

Marina e Marcus resolveram ajudar o velho índio. Passaram ainda algum tempo com ele, escutando histórias de sua mocidade e contos fantásticos dos indígenas sobre a Iara, o Caipora, Ciuci e sobre outros personagens.

Depois, os Gêmeos Brasilis retornaram à aldeia e ficaram de olho nas crianças lideradas pelo sobrinho do cacique. Na manhã seguinte, elas saíram da aldeia e os dois irmãos resolveram ir atrás.

A raposinha, criada na aldeia, havia ficado em casa, mas quando percebeu que Marcus e Marina iam ao encontro das crianças resolveu acompanhálos. Os irmãos ficaram felizes, pois certamente o animal conhecia o rumo tomado pelos curumins — caso Marcus e Marina os perdessem de vista, a raposa poderia conduzi-los dentro da mata, evitando que ficassem à toa no meio entre os animais selvagens. Os curumins seguiram por uma região muito bonita — mas, somente no começo da jornada. Depois, penetraram em uma área agreste, cheia de cavernas e com árvores contorcidas e esgalhadas. Os irmãos lembraram-se da Região Sombria, onde enfrentaram o capelobo e o monstro da Iara.

Os índios, comandados por Cauã, iam bastante atentos. Levavam pequenas lanças e tacapes.

Ouviam-se miados prolongados de onças e silvos de serpentes. A raposa também caminhava com os sentidos alerta e tinha muita vontade de correr para o grupo que ia à frente, mas Marina e Marcus procuravam controlá-la — afinal de contas, se ela alcançasse os curumins, eles descobririam que estavam sendo seguidos e só Deus sabe o que aconteceria aos Gêmeos Brasilis.

Em certo momento, um ruído peculiar de chocalho chamou a atenção de Marina e de Marcus e, a poucos metros diante deles, apareceu uma cascavel. A raposa deu um rosnado, ameaçando o réptil. Mas, a serpente não se intimidou e continuou diante deles, silvando com sua língua bífida e sacudindo a cauda ruidosa. — E agora, Marina? — perguntou Marcus. Corajosamente, a raposa atacou. A cobra recuou, mas não foi embora. Espichou a cabeça, revelando os dentes, pronta para dar o bote. Ela realmente deu o bote… mas, errou o alvo: a raposa desviou-se habilmente

do ataque. Foi então que Marcus, que havia apanhado um galho forcado, agiu rapidamente e prendeu a cabeça da cascavel entre os braços do galho. — Boa, Marcus! — gritou Marina, abraçando o irmão. Eles continuaram seguindo seu caminho enquanto a cobra debatia-se para se libertar da forquilha.

Finalmente, os Gêmeos Brasilis perceberam que as crianças da aldeia desciam um declive e entravam em uma grande caverna. A raposa eriçou os pelos, pressentindo o perigo. Essa era a atitude habitual dela quando chegava naquele lugar e, muitas vezes, até evitava penetrar na caverna, esperando pelas crianças do lado de fora.

Marcus, por sua vez, lembrou imediatamente a história da terrível bruxa devoradora de crianças, a Cuca. Mas, aquela gruta não pertencia a ela, mas a outra criatura, não menos terrível e nem menos perigosa…

Os irmãos resolveram encarar o desafio para ajudar o índio Ibaretama e as próprias crianças da aldeia.

No interior da gruta, Cauã e seus amigos conversavam com uma criatura cabeluda, corpulenta, muito alta e… com um só olho no meio da testa, tal como os ciclopes da mitologia grega!

Era Labatut, criatura terrível que também apreciava carne de crianças.

Labatut era impiedoso com suas vítimas. Outras características suas, além do olho único e os pelos de porco espinho, eram os pés redondos, as mãos e os dedos muito compridos, os cabelos longos e desgrenhados e as presas que pareciam as de um elefante. Sua voz era cavernosa, entremeada com rugidos bestiais.

Cauã, que nunca fora um bom menino, conhecera o monstro em uma de suas incursões pela mata,

aonde sempre ia a fim de caçar animais. Labatut bem que tivera vontade de comê-lo, mas percebendo as más tendências do índio, resolveu aproveitá-lo para atingir seus objetivos.

Cauã chegou a levar alguns índios pequenos para a fera, que os devorara avidamente. Depois, o índio pedira para que Labatut não comesse mais os curumins da aldeia, pois o pajé Apoema e o seu tio, o cacique Ubiratan, já estavam desconfiados.

Foi conversando com Cauã que o mostro descobrira a existência do camaleão da riqueza, um animal sagrado que conferia todo tipo de riquezas a quem o possuísse. Labatut considerou que, com esse camaleão, poderia ter as crianças que quisesse, além de muito ouro e prata. Quem sabe não se tornaria um grande imperador como Napoleão Bonaparte?

A história de Labatut era muito interessante. Ele fora um general francês que servira no exército de Napoleão e no de Simon Bolívar, o libertador da América espanhola. Depois, ele viera para o Brasil, onde trabalhara no exército no tempo de D. Pedro I. Atuou principalmente na Bahia, onde venceu os portugueses na Batalha de Pirajá. Outro local em que lutou foi o Rio Grande do Sul na Revolução Farroupilha.

Pedro Labatut era um general muito cruel, impiedoso com seus adversários. Os índios conheciam muito bem essa característica dele. Supostamente, ele falecera no ano de 1849, em Salvador, capital da Bahia. Mas, os índios sabiam que isso não era verdade…

Um feiticeiro indígena, um daqueles que viravam andirá depois de mortos, jogou uma maldição sobre o militar, transformando-o naquele monstro.

Foi assim que nascera o monstro Labatut.

Como condição para não matar as crianças da aldeia, nem o próprio Cauã, a fera ordenara ao índio que trouxesse os curumins para servi-lo em tudo que ele desejasse. Assim, formou-se aquele grupinho de doze índios que cumpriam as ordens de Labatut.

O sobrinho de Ubiratan já estava arrependido de ter travado conhecimento com aquela besta e de ter feito acordo com ela. Mas, agora era tarde… Se as crianças da aldeia não fizessem tudo o que Labatut ordenava, provavelmente, ele atacaria a aldeia e mataria, não somente as crianças, mas todos os índios.

Naquele dia, os curumins dirigiram-se à caverna para lhe entregar o camaleão.

Vendo o animal sagrado, o olho único de Labatut brilhou de alegria. Ele arrebatou o animal das mãos de Cauã e fitou-o inúmeras vezes. O bichinho, por sua vez, como se sentisse que estava em perigo, alterou sua cor, ficando completamente escuro, tal como as mãos do monstro. — O que vamos fazer, Marina? — cochichou Marcus para a irmã, escondidos atrás de uma grande pedra dentro da caverna. Mal terminara de falar, bateu em uma campainha de metal, situada no nível do solo. O monstro de um olho só usava essa campainha para alertá-lo sobre visitas indesejadas.

Involuntariamente, o menino entregara a si mesmo e à sua mana… — Invasores! — rosnou Labatut — Peguem-nos! Cauã e os outros índios reconheceram os Gêmeos Brasilis, mas atacaram, cumprindo as ordens de Labatut. Marcus e Marina eram somente dois — os índios eram doze! E estavam armados! Foi então que Marina lembrou-se do trevo de quatro folhas e puxou-o do bolso como se fosse uma arma. Sem entender por que, os curumins ficaram paralisados, não conseguiam sair do chão, nem usar suas armas.

Pouco a pouco, eles foram largando suas lanças no chão. — Vamos ajudar vocês! — explicou Marcus. Labatut, percebendo que as crianças hesitavam, avançou contra os intrusos. Porém, ao olhar para o trevo, esbugalhou o olho e gritou desesperado.

Marcus apanhou uma das lanças. Mariana sacudiu o trevo sobre sua lâmina, despejando um tipo de

pozinho mágico que fazia a arma ficar mais forte que o bicho. Então, Marcus jogou a lança contra a fera, acertando-a no peito.

As crianças vibraram de alegria. Agora se sentiam animadas a lutar contra o monstro. Sim! Podiam se libertar do seu domínio de terror!

— Vamos embora! – gritou Marina. Marcus conduziu os curumins para fora da caverna, seguido pela irmã, que continuava mantendo o trevo empunhado. Levavam também o camaleão da riqueza para devolvê-lo a Ibaretama.

A raposinha, do lado de fora, saltou de contentamento ao rever seus amigos.

Antes de ir embora, Marina disse: — Esperem aí! Vou conferir como está o monstro! (Ela ainda não sabia que ele se chamava Labatut). Com o trevo diante dela, a garota retornou ao antro cuidadosamente. Ela acreditava que o monstro havia morrido com aquele golpe de lança.

Mas, teve uma enorme decepção…

No local onde Labatut caíra ferido, jazia somente a lança machada de sangue.

Ele sumira!

CAPÍTULO 5

ATRAVESSANDO O MAR PRÉ-HISTÓRICO


O grupo de crianças retornou à aldeia, liderado por Marcus e Marina. Cauã estava profundamente arrependido por tudo que fizera e a, partir desse dia, tornou-se um menino exemplar e muito religioso, ajudando Apoema a celebrar os ritos e ajudando o tio cacique a proteger a tribo.

O tempo passou. Vitória-Régia teve seu filho, um menino forte e bonito, que já nasceu sabendo nadar e conseguia até respirar debaixo d´água.

Apesar de se sentirem felizes em viver ali, Marina e Marcus se perguntavam como estariam seus pais na cidade de Véu de Reis. O pajé, que era o índio mais sábio de todas as tribos do Mundo Floresta Caiçara, explicou que eles não precisavam se preocupar: — O tempo aqui transcorre de forma diferente do tempo de lá. A Caverna Secreta que vocês atravessaram separa dois mundos distintos, duas dimensões paralelas. O que aqui corresponde a muitos meses será somente alguns segundos, ou bem menos que isso, para os habitantes de Véu de Reis.

Essa notícia tranquilizou os irmãos. E eles voltaram a brincar com os curumins, com Vitória Régia, com a raposinha e com os outros animaizinhos da aldeia. Foi assim até que, uma noite, apareceu o queixada do Caipora. Ele se aproximou da aldeia e entregou uma mensagem por escrito do duende protetor das matas.

Estava escrito:

“A Mula Sem Cabeça foi novamente capturada pelos capelobos. Ela precisa da ajuda de vocês.

Sigam o mapa que acompanha esta mensagem e chegarão ao outro lado do Mundo Floresta Caiçara. Lá, certamente, vocês enfrentarão novos desafios. Nunca esqueçam do poder que o trevo de quatro folhas concede aos seus usuários. Boa sorte!. Sabendo do que acontecera com sua amiga, os Gêmeos Brasilis despediram-se do cacique Ubiratan, do pajé Apoema, da índia Vitória Régia e todos os moradores da aldeia e partiram rumo ao desconhecido.

O pajé abençoou as crianças e Cauã deu uma fitinha benta para que eles amarrassem em seus braços.

O mapa que o Caipora enviara continha todas as coordenadas do local onde a Mula Sem cabeça se achava prisioneira. Foi uma longa caminhada por vales profundos, povoados por serpentes e cães selvagens. Mas, nenhum deles atacava as crianças, bastando que elas mostrassem o trevo para que os animais se tornassem mansos e inofensivos.

Foi assim até que chegaram a um grande mar, tal como o Mar Mediterrâneo. O mapa dizia que aquele era o Mar Pré-Histórico. Do outro lado do mar, estava a região onde se encontrava prisioneira a Mula Sem Cabeça, feita novamente escrava de capelobos.